Queridos pais, atinem ou fujo de casa

Por Sofia Anjos

Cheguei há meia dúzia de meses e não quero criar mau ambiente. Li sobre essa teoria dos bebés revirarem a vida dos pais, mas lamento informar que vocês o conseguem fazer sozinhos.
Sou bebé, tenho seis meses e preciso de desabafar. Juro que tenho uma crise de choro se me voltam a perguntar "É menino ou menina?". Sou menina, não se vê logo? E parem de me tratar como se aqui não estivesse. Desde que nasci, existo na 3ª pessoa do singular: ela chama-se, ela gosta, ela comeu, ela isto e aquilo. Ela está aqui a ouvir tudo – ouviram?
E "ela" fala, palra, grunhe. Vocês é que não entendem, e eu ando a falar para mais bonecos do que os que vivem no meu quarto. Aproveito para dizer que já tenho três ursos e um pai barbudo e, se me oferecem mais um, vou achar que nasci numa família de ursos que raptou a mãe. Portanto, inscrevi-me no sindicato deste lar-doce-lar e tenho algumas reivindicações a fazer.
Cheguei há meia dúzia de meses e não quero criar mau ambiente. Li sobre essa teoria dos bebés revirarem a vida dos pais, mas lamento informar que vocês o conseguem fazer sozinhos, sem precisar da minha ajuda. Os vossos olhos ensonados e cabelos desgrenhados metem qualquer fantasminha a um canto. Só de vos ver, faço xixi nas fraldas. Sugiro que se penteiem antes de aparecerem no meu quarto a meio da noite.
Ontem esforcei-me por avisar que estava com dor de barriga: avisei uma, duas, três vezes, e vocês nada. "Gugu dadá", e já só perceberam quando sentiram o cheiro. Outra coisa: caso não saibam, é que sempre que me elevam no ar, fico enjoada. E bolso, porque vocês adoram fazer essa gracinha depois de me darem de comer. É física, sabiam?
Ah, e as mãozinhas das visitas em cima de mim... Umas mais cheirosas que outras, mas adiante, os amigos são vossos. Lá porque gosto de festinhas e de leite, não sou um gato. Depois de uma centena de festinhas, sinto-me amassada e não acarinhada.
Mamã, quando o pai me troca a fralda, esquece-se de usar o creme muda fraldas. Pai, quando a mãe me dá banho, fico com sabão nos olhos. E depois anda por aí a lançar o boato que eu não gosto de tomar banho. Injusto. Podes mostrar-lhe aquele vídeo de como dar banho ao bebé? Prometo que não choro no teu turno da noite na próxima semana. Mas aviso-vos já que não estou para aturar as vossas distrações. Já chorei, berrei e até gemi. Se continuarem, fujo de casa assim que começar a andar.
É claro que gosto de vocês. Muito. Embora não tenha termo de comparação. Parecem-me um pouco desorientados, mas há imensas coisas de que estou a gostar. De ir para a vossa cama de manhã, do colinho a meio da noite, de quando me levam a passear pela casa. Do solzinho que entra pela janela. E dos Daft Punk.
Mas onde é que estavam com a cabeça quando compraram o tapete do meu quarto? Se a ideia era colorir o meu estado de espírito, acertaram. Acordo tranquila a olhar o tecto branco, mas assim que pouso os olhos no tapete, fico logo com vontade de saltar do berço e dançar hip hop. Inquietam-me aquelas manchas vermelhas. Isso e o urso gigante que o avô ofereceu. Xoné? Não tinham um nome mais apropriado para um urso de peluche? Sugiro que comecem a juntar uns trocos, pois quando crescer vou ter de explicar ao psicanalista que o meu melhor amigo de infância era o Xoné, que não se aguentava em pé.
Continuemos a anotar as coisas que me agradam, sim? Ao estilo daquele programa que tenho de "gramar" todos os Sábados. Gosto da luva com fantoches, do caranguejo de plástico, do boneco-cão e do livro com barulhos. Tudo o resto, podem dar. Gosto da papa e do leite, não gosto da sopa. É insonsa. Gosto das calças de ganga e dos pijamas-saco. Não gosto, nem vou gostar nunca, de camisolas de enfiar pela cabeça. Passar a cabeça por um buraco mais pequeno que a minha cabeça é um trauma que jamais esquecerei. Gosto das maminhas da mãe. Das duas. Não gosto que me enfiem soro pelo nariz abaixo. Gosto do dedo-águia do pé do pai. Não gosto do senhor do café, nem de ir às vacinas. E lacinhos na cabeça? Caros papás, não tenho cabelo, isso acaba já aqui, hoje.
O berço não é um posto de trabalho. De manhã quero estar na espreguiçadeira e, à tarde, no chão. E sociabilizar, por isso, faço questão que se sentem no sofá ao meu lado. Se quiserem ir à casa de banho, não vão aos pares, com essa nem a mim enganam. Desaparecerem lá para dentro a fazer outras coisas, também não gosto. Quando me derem leite, olhem para mim, não falem para o lado ou vejam televisão. Está provado que as famílias que fazem refeições juntas são mais felizes.
Entretanto, já sinto saudades. Quando nasci, o pai enxotava-me as moscas, a mãe esterilizava os biberões. Seguravam-me a cabeça, pousavam-me com delicadeza no berço, falavam baixinho. E compravam-me fraldas sem ser de marca branca. Gostava disso. Podem voltar a ser assim?
Finalmente, quando estou realmente chateada, quero o colo da mãe. Isto não é negociável. É que ela tem um não-sei-quê que, quando me pega, me faz sentir que sou a sua bebé. E me dá a certeza de que Laura há só uma e sou eu.

Sofia Anjos, 38 anos, directora de contas numa agência de comunicação, foi mãe pela primeira vez em Maio.

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